Elas gostam dos vilão?: mulheres, dark romance e o que vem no meio
- algodogenerolab
- 22 de set.
- 7 min de leitura
O que atrai na forma que mulheres exploram tabu e sexualidade e onde estão os limites?
Esta é a primeira parte de uma série de duas publicações focadas em falar sobre o sucesso da literatura dark romance.
Por Samantha Freire
Das Hildas Hilsts às E. L. James, sexualidade, desejo e o pornográfico explorados pela perspectiva feminina não são raridades ou novidades na literatura. Temas controversos, espinhosos e tabus também não, sendo importantes em escolas como a literatura gótica ou em clássicos como Lolita, de Vladimir Nabokov. O encontro entre o desejo feminino e a controvérsia, por sua vez, é pivô de discussões complexas: há forma correta de representar esse encontro? O que dizem sobre os desejos e vivências das mulheres que escrevem e consomem?
Nos últimos anos, a discussão que questiona se é machismo ou liberação sexual o que está na origem e sucesso de certos tropos representados em obras que tratam das experiências de mulheres que se relacionam com homens ganhou um novo objeto: o dark romance. Nativo, com esse nome, estética e estratégia de distribuição atual, na era de internet, o gênero pode explorar sexo, temas tabus e fetiches mais extremos (com mais ou menos elaboração e responsabilidade) e circular com a autonomia que só o ambiente digital garantiria.
O primeiro contato com dark romance de Ingrid Castro, técnica de enfermagem de 32 anos, por exemplo, foi no Wattpad, plataforma de compartilhamento de histórias onde há muito as mocinhas nas fanfics do One Direction eram sequestradas ou vendidas para os integrantes da banda para qualquer pré-adolescente que quisesse ler.
“Na época que eu conheci, parecia uma terra sem lei, com várias histórias bem pesadas, eu não sei dizer se hoje continua assim porque eu parei de fazer uso dele. Mas é um site onde você encontra tudo com muita facilidade, né?” diz a leitora, que, apesar de preferir histórias mais leves dentro do subgênero, conta ter sido atraída pela mudança que este estilo traz em comparação a outros romances e seus clichês.
A popularização recente dos dark romances se deve a títulos como "Perseguindo Adeline” (H. D. Walton), “Credence” (Penelope Douglas), a série “Dark Hand” (Zoe X), a trilogia “Os Walton” (Red R.), a série “Dark Love” (Caroline Andrade), entre inúmeros outros que circulam nos ecossistemas das bookredes – bolhas digitais que se formam em plataformas como como Instagram, X, TikTok, Youtube em que criadores de conteúdo, usuários leitores e mesmo autores discutem, divulgam e circulam obras. Neste subgênero, as obras se diferenciam de outros romances com hots explícitos pela presença mandatória de enredos que envolvem homens e relacionamentos perigosos, quase ou inteiramente tóxicos e “problemáticos” para parâmetros culturais contemporâneos, sem qualquer espaço para romance água com açúcar na pausa entre transas.
Com listas numerosas de gatilhos (abusos psicológicos, sexuais, físicos, sequestro, tráfico, manipulação, filias, obsessão), os romances substituem os jogadores de hockey, pilotos de fórmula um e quarterbacks, presentes em sucessos como “Quebrando o Gelo”, por caras envolvidos com todo tipo de atividades ilegais e várias red flags, alfas sádicos com passados trágicos que stalkeiam e testam os limites do consentimento da mocinha, ou mafiosos que são, sem dúvida alguma, abusadores e criminosos sexuais. Os personagens são “moralmente cinza” de todos os tons em histórias que vão do “grey” ao “pitch black”.



A estética que se aproxima ou do terror, filmes de ação ou luxuoso como 007, domina as capas e feeds das autoras ou editoras como a Fruto Proibido.
O comportamento irreverente das leitoras e autoras nas redes sociais, que afirmam que “quanto mais gatilho, melhor” ou zombam da expectativa de que seriam leitoras de obras à la Nicholas Spark, não escapou de controvérsia: por um lado, uma crítica mais feminista questiona o papel que o dark romance pode ter na banalização de violência de gênero e reforço do lugar de submissão radical de mulheres. Por outro, homens e mesmo mulheres dos mais aos menos liberais não poupam xingamentos misóginos para falar das consumidoras do gênero, acusando-as de degeneração ou apontando que mereceriam sofrer violações.
Em ambos argumentos, a palavra “romantização” aparece como parte central, mas para Isadora Urbano, doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), vai além disso: os livros não necessariamente romantizam, mas podem perpetuar um olhar pouco crítico para relações baseadas em dominação.
“Acho que são as ideias de liberdade sexual e de consentimento o que aparece como empoderamento nesses casos, além da ideia de que reconhecer os próprios desejos requer coragem. O problema é que a pulsão totalmente fora de controle numa liberdade sexual absolutamente irrestrita – o que não existe, mas fazendo o exercício imaginativo de pensar suas consequências, caso existisse – levaria o sujeito à autodestruição, além da destruição do outro", comenta.
Prazer e fantasia, mas com limite
Para Ive Pitanga, 23, professora de redação, revisora e preparadora de texto, o principal atrativo do gênero, que para ela é definido pelas distorções morais, é a intensidade. “Tudo em histórias de dark romance é muito intenso, tudo é muito, tudo é demais. Não existe nada morno, nada muito tranquilo. É sempre tudo muito”. Ela conta que, através da forma hiperbólica que o dark romance representa relações, explorou o desejo que alimentava desde cedo, enquanto leitora de romance, de experienciar um amor com toda a intensidade que poderia existir, mas que “foi um movimento até de certa frustração de entender no processo ‘isso aqui é uma é uma história, isso acontece e está tudo bem só na história”.
A jovem acredita que existem consensos sobre quais temas não devem ser romantizados e que as leitoras, em maioria, conseguem discernir o que é aceitável para ficção e o que seria problemático na realidade.
“A gente consome muitas coisas que são tóxicas e problemáticas e moralmente distorcidas, mas na vida real a gente quer um completo oposto, e se na vida real a gente recebesse algo minimamente parecido a gente já sairia correndo, sabe?” explica, citando como exemplo interesses amorosos muito possessivos e protetores ou que stalkeiam as protagonistas. Para Ive, o que atrai muitas mulheres em dark romance é a sensação de proteção e de ter um parceiro obcecado, mas na realidade é diferente: “Um cara aleatório passou a mão na mulher dele, ele foi lá e quebrou a mão do cara. Amei. Foi lindo, maravilhoso o meu casal. Mas se fosse na vida real, eu ia ficar tipo: ‘velho, calma’”, diz.
Fora das páginas, essa possessividade e hiper-proteção e os ciclos de abuso e violência que são parte (das mais sutis e dúbias às mais explícitas formas de violência psicológica, sexual e física, por exemplo) aparecem como tropos frequentes no dark romance. O Atlas da Violência 2025 indica que 64,3% das agressões contra mulheres são configuradas enquanto violência doméstica. Esse ciclo de violações, que em muitos casos acaba em letalidade, resultou em 3.903 vítimas de feminicídio em 2023 segundo o Atlas da Violência. Segundo o Anuário de Violência, as tentativas chegaram a 3.870 em 2024 e, nos casos em que sucedem, 97% dos algozes são homens.
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Quadro – Dados do Anuário de Violência e Atlas de Violência sobre violência de gênero
Isadora Urbano aponta que essa possibilidade de se distanciar da realidade, qualquer que seja, é algo que todo leitor pode experienciar, mesmo que se trate de uma realidade de violência. “Parte do que faz com que [a ficção] seja tão cativante vem justamente do fato de que por meio dela certas coisas nos acontecem como experiência imaginativa e afetiva, ainda que não seja em razão de eventos vividos na realidade factual [...]. A literatura tem sempre a ver com desejo de certa experiência, que pode se manifestar de diversas maneiras, inclusive a partir da tematização explícita do sexo e do jogo com o que nele é ou não permitido. Até porque o desejo sexual, em grande medida, tem a ver com as interdições ou ‘tabus’”, diz.
Para Ingrid, o limite está dado, e de forma simples: os romances têm classificações indicativas e é costume que as autoras deixem, para além das alertas de gatilho, recados que relembrem que as situações representadas nos livros são perigosas e, caso aconteceram na vida real, a polícia deve ser acionada. “Eu acho que as pessoas têm que saber maneirar. Eu vou ler um livro de fantasia em que há uma fada, chegar no alto da minha casa e saltar? Eu vou me deixar influenciar achando que eu também sei voar? Claro que não. Acho que a pessoa que se deixa influenciar por esse tipo de livro, na verdade, precisa de algum tratamento, né?”, opina.
Embora se destaque pelos temas extremos, para muitas leitoras, a “experiência inalcançável” do dark romance representa a possibilidade de explorar a própria sexualidade, por mais banais que sejam os desejos.
“Existem cenas e acontecimentos nas histórias que são muito atrativos e que são muito chocantes, que [fazem pensar]: ‘ai meu Deus, como isso é incrível’ e ‘ai meu Deus, eu adorei’ e ‘isso mexe muito comigo’. E eu particularmente poderia não querer viver isso na realidade e me sentiria desconfortável, porque não é um fetiche meu, mas na história fez todo o sentido”, diz Ive. Ela cita o exemplo do BDSM (acrônimo para Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo), prática mais conhecida popularmente por ser uma dinâmica que permite a exploração de fetiches considerados mais extremos. “Existiram muitos momentos com cenas e coisas acontecendo que me deixaram tipo: ‘tá, beleza, talvez eu queira viver isso aqui’ ou ‘hum, achei isso interessante, quero viver isso, gostaria de viver isso’. Eu acho que é muito sobre isso.”
Isadora explica que uma análise desses textos e de sua repercussão na realidade requerem entender que, para muitas mulheres, há contradições entre seus posicionamentos políticos e fantasias sexuais. “O fato de ser moralmente questionável, sobretudo de um ponto de vista feminista, não acarreta que os desejos de dominação e/ou de submissão não tenham alguma validade de um ponto de vista psíquico, já que aquilo que nos atrai sexualmente e alimenta nossas fantasias nem sempre é compatível com a agenda política que defendemos. Isso tampouco significa que do ponto de vista político a dominação dos homens sobre as mulheres seja aceitável”, afirma.
continua...