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Feridas abertas do rio doce nas mãos de Dona Efigênia

Das margens do Rio Doce à capital federal, a resistência feminina clama por justiça e visibilidade para crimes que insistem em não ter fim.

Por: Ariele Lima


Em Brasília, por quatro dias intensos, mais de mil mulheres de todo o país se reuniram para a Jornada Nacional de Luta das Mulheres Atingidas. Era impossível conhecer cada uma delas, com suas vozes e suas dores únicas, mas a pulsação que as unia era inegável: a chaga aberta de crimes ambientais e o abandono do poder público.


Compartilhamos o chão dos alojamentos, a espera nos banheiros coletivos, as longas filas para o almoço. E foi nesses pequenos intervalos, entre uma espera e outra, que os relatos brotavam com a força de um rio represado. No último dia, a jornada culminou em um ato rumo à Esplanada dos Ministérios, denunciando o PL 2159 – o PL da Devastação. No caminho para o segundo ato, em frente à embaixada da Palestina, uma silhueta miúda subiu no nosso ônibus. Uma senhora mineira, sacola preta no colo, olhos curiosos que perscrutavam o ambiente antes de pousarem ao nosso lado. Era Dona Efigênia.


Efigênia Alves, uma das 54 mulheres mineiras presentes na jornada nacional em Brasília. Foto: Ariele Lima.
Efigênia Alves, uma das 54 mulheres mineiras presentes na jornada nacional em Brasília. Foto: Ariele Lima.

A conversa, inicialmente leve, falava do frio da capital e do tamanho do ônibus vindo da Bahia. Mas, rapidamente, o papo adensou. Dona Efigênia me conta que vem de São José do Goiabal, uma das cidades atingidas por um crime que marcou o país: o rompimento da barragem da Samarco, em 5 de novembro de 2015. Ela conta que, se não fosse pelo MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), a comunidade estaria "no escuro", sem direcionamento ou apoio para lutar por seus direitos. "Eles que estão nos ajudando a conquistar alguma coisa", desabafou.


Quando a barragem de Fundão, da mineradora Samarco (controlada pela Vale e BHP Billiton) se rompeu, liberou cerca de 39,5 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro. A enxurrada tóxica desceu o Rio Gualaxo do Norte, atingindo o Rio do Carmo e, por fim, o Rio Doce, percorrendo mais de 650 quilômetros até desaguar no Oceano Atlântico. A tragédia, considerada o maior desastre ambiental do Brasil, ceifou 19 vidas e destruiu ecossistemas inteiros.


Para Dona Efigênia, que mora a apenas dois quilômetros do Rio Doce, a devastação vai muito além dos rejeitos visíveis. "Nossa alegria era no rio, a gente brincava de piquenique, era o lazer das nossas crianças, meus filhos foram criados no rio e hoje só restou a lama e a devastação", lamenta,  com um nó na garganta. As terras férteis, antes sustento da comunidade, hoje são estéreis. "Nada que a gente faz em nossa propriedade vai adiante, tudo morre", explica.


Enquanto a conversa avançava, a sacola preta que Dona Efigênia carregava no colo, quase imperceptível até então, ganhou outro significado. Com um gesto cuidadoso, ela revelou seu conteúdo: duas garrafas plásticas transparentes. Uma delas continha a areia pesada e escura, com rejeitos que ainda hoje se acumulam nas margens do Rio Doce, uma década após o rompimento. A outra, uma amostra da água barrenta do rio, uma prova viva da contaminação que persiste, recusando-se a desaparecer. As garrafas, mais do que simples objetos, eram um testemunho silencioso e palpável da tragédia, uma lembrança constante da cicatriz que a lama deixou na paisagem e na vida de milhares de pessoas.


Dona Efigênia carrega uma amostra da água do rio doce em uma garrafa plástica. Foto: Ariele Lima.
Dona Efigênia carrega uma amostra da água do rio doce em uma garrafa plástica. Foto: Ariele Lima.

Com cinco filhos e avó de netos que também dependem do rio, Dona Efigênia relata que, até hoje, ela e sua família não receberam nenhuma indenização. Os impactos do rompimento se ramificam em problemas de saúde graves e um aumento assustador de doenças psicossomáticas na comunidade. "A família da gente está indo toda embora porque nossa cidade parou. Os jovens mesmo contam que assim que completarem 18 anos vão embora", revela. O futuro da cidade parece agora incerto, corroído pela falta de perspectiva.


O caso de seu filho, de 28 anos, é um retrato doloroso dessa realidade. "Toda a vida a gente morou perto do Rio Doce, meu filho trabalhou com o rio a vida inteira, trabalha até hoje porque precisa sustentar a família. Mas depois do rompimento da barragem ele começou a ter diversos problemas de saúde, chegando a perder a visão de um dos olhos e estar em risco de perder a outra", desabafa, a voz embargada. Ela não acredita nos diagnósticos médicos que atribuem a cegueira a um problema de nascença. "Eu tenho certeza de que meu filho não nasceu assim. Quando as dores atacam, meu filho chora de dor, não aguenta a luz do dia nem da lua e vive à base de colírio gelado. Quem vai pagar por isso?", questiona.


A doença não é um caso isolado. "Vejo que meu filho não é o único, todo o povo está tendo problemas, nem pode encostar na areia que começa a coçar tudo", pontua Dona Efigênia. Ela própria, "uma mulher saudável, uma mulher ativa", agora lida com diabetes e problemas cardíacos, um reflexo do estresse e da contaminação a que foi exposta.


A história de Dona Efigênia, uma das 54 mulheres de Minas Gerais presentes na jornada, ecoa as vivências de tantas outras atingidas na bacia do Rio Doce. A jornada em Brasília pode ter terminado, mas a luta de Dona Efigênia e de tantas outras mulheres está longe do fim. Em cada relato, em cada cicatriz visível e invisível, reside a urgência de uma justiça que tarda, mas que elas se recusam a abandonar.


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