Desafiando a Heterossexualidade Compulsória: A Perspectiva de Chappell Roan
- algodogenerolab
- 29 de ago.
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A consequência das limitações afetivas e sexuais na vida de mulheres e meninas
Por: Mellyssa Cavalcanti
O patriarcado é uma construção social na qual os homens exercem poder e autoridade sobre as mulheres, manifestando-se de diversas formas e impactando a vida feminina em várias áreas. A heterossexualidade compulsória é um dos frutos desse sistema patriarcal presente nas sociedades. O conceito, introduzido pela intelectual norte-americana Adrienne Rich, em seu artigo “Heterossexualidade Compulsória e a Existência Lésbica” de 1980, argumenta que a heteronormatividade compulsória é, antes de tudo, uma opressão política. Rich afirma que instituições como a maternidade no contexto patriarcal, a exploração econômica, a família nuclear e a heterossexualidade compulsória são fortalecidas por legislações, normas religiosas, imagens midiáticas e esforços de censura.
A partir desse contexto social, entender-se como lésbica não é fácil e pode representar um grande desafio, gerando, em muitos dos casos, um conflito significativo para mulheres que se desviam das normas sociais aceitas. Reflexo de uma cultura que busca incessantemente reforçar a heteronormatividade.
Desde cedo, somos ensinadas a nos enxergar em um mundo onde na TV princesas apenas beijam príncipes, rainhas apenas beijam reis, e não há espaço para outras identidades.
Muitas meninas nem sabem nomear o que sentem. Como em But I'm a Cheerleader (no Brasil, "Eu Nunca Fui Santa"), de 1999, sátira ácida sobre campos de conversão, a protagonista Megan nega sua sexualidade com o protesto: "Eu tiro boas notas, vou à igreja, sou líder de torcida!" Como acreditar na própria lesbianidade quando se segue o manual das normas sociais tão à risca?

E assim, meninas lésbicas, que não conseguem enxergar outra forma de vida a não ser na heterossexualidade, acabam aceitando viver de acordo com o que é imposto como certo na sociedade e escondendo sua insatisfação com suas relações heterossexuais e o constante sentimento de que falta algo no relacionamento.
Na canção “Good Luck, Babe!” (Boa sorte, querida), da cantora que vem ganhando destaque este ano, Chappell Roan, é possível ver essa questão acontecendo de forma clara. A cantora explora como a heterossexualidade compulsória age e assombra a vida de uma mulher que tenta ignorar seus sentimentos por outras mulheres. A artista constrói uma narrativa de uma garota que observa a sua amada negar seus sentimentos por outras garotas e se força a seguir a heteronormatividade.

No trecho “você pode beijar cem garotos em bares, tomar outro drink apenas para parar o sentimento, você poderia dizer que é só o seu jeito, arrumar uma nova desculpa, outra razão idiota”, evidencia como a narradora está convencida de que, não importa as ações da outra pessoa, nada vai parar os sentimentos dela por garotas. As suas tentativas de ignorar sua verdadeira orientação sexual ao se relacionar com homens só trazem mais à tona a sua real identidade.
Chappell Roan retrata o processo doloroso de auto aceitação feminina e como a heteronormatividade muitas vezes obstrui o amor genuíno e verdadeiro entre duas mulheres. A linha “você terá que parar o mundo só para parar o sentimento, boa sorte querida” serve como uma ironia contundente, apontando para a futilidade das tentativas de mudar algo inerente em si mesma, enfrentando assim, as regras que moldam as mulheres na sociedade atual.
A representação que Chappell Roan traz em sua letra é crucial para o sentimento de identificação de meninas que podem estar passando por experiências semelhantes às descritas na canção. Sua música não só ajuda a iluminar o desafio da heterossexualidade compulsória, como também serve como um meio poderoso para a autoaceitação. A relevância de Chappell Roan vai além da canção mencionada, ela desempenha um papel significativo na cultura pop ao abrir espaço para representações do amor entre mulheres em uma esfera predominantemente heteronormativa.
Com uma mídia global que, desde que nasceu, pouco se preocupou com a representação LGBTQIAPN+ nas telas de TV e na música, isso ainda ocorre nos dias atuais. Em uma pesquisa feita pelo Visual GPS 2021, da Getty Images, foi apontado que apenas 20% dos entrevistados globais afirmaram ver pessoas LGBTQIA+ representadas regularmente em imagens e, quando o fazem, as representações são estereotipadas. Isso é ainda mais complicado quando falamos de lésbicas, uma sexualidade frequentemente apagada e excluída, já que a indústria, dominada por homens, prioriza as vivências sob suas próprias óticas, e muitas vezes fetichiza as relações entre mulheres para o prazer do homem hétero, e não para a representação de uma comunidade.

Hayley Kiyoko, assim como Chappell Roan, é um exemplo de representatividade no mundo da música, na busca de representações reais. Com sua música “Girls Like Girls”, de 2015, foi uma pioneira no mundo pop ao abordar o amor entre garotas e a heterossexualidade compulsória, estabelecendo um importante precedente na mídia. Assim como Kiyoko, Roan contribui para a visibilidade e aceitação das identidades queer, conquistando espaço em meios de comunicação como TV, rádio e paradas da Billboard.
No Brasil, a representatividade de mulheres não-hetero sempre foi presente, ainda que tentassem o apagamento. Nomes como Cássia Eller, Gal Costa, Maria Bethânia e Ana Carolina no MPB, Leci Brandão no pagode, até Ludmilla que atualmente faz sucesso e “caiu” na boca dos brasileiros com suas músicas sobre mulheres que amam mulheres.

“Quero que as pessoas enxerguem meu lado homossexual como coisa séria, que haja respeito”, essa frase foi dita por Leci Brandão em uma edição do Jornal Lampião da Esquina (jornal conhecido na ditadura militar pelo ativismo LGBTQIAPN+) como forma de protesto para aqueles que não a enxergavam como mulher séria na música por causa da sua lesbianidade.
Juntas, essas e muitas outras artistas ajudaram e ajudam a construir um futuro onde meninas não precisam se conformar às normas sociais simplesmente por não conhecerem outras que sentem e vivem o mesmo que elas, mostrando que sim, princesas podem beijar princesas e rainhas podem beijar rainhas.
Portanto, o caminho a ser seguido pela mídia, e quem sabe na sociedade em geral também, é de uma representação feminina feita por mulheres e para mulheres. Que, ao invés de negar nossa existência ou esconder quem realmente somos, devemos reconhecer que nossos sentimentos e identidades são legítimos e persistem, independentemente das pressões externas. Como a própria canção citada aqui sugere, se alguém ainda quiser continuar ignorando sua verdadeira identidade, com uma luta constante contra o que não pode ser mudado: boa sorte, querida.
Adorei o texto de um assunto tão importante 👏👏